Por que buscar “fazer aquilo que você ama” pode ser algo danoso em sua vida
- Daniel Deggerone
- 10 de nov. de 2024
- 7 min de leitura
Todos nós já ouvimos o famosíssimo "trabalhe com aquilo que ama e jamais terá que trabalhar um dia sequer na vida".
Lindo e reconfortante.
Mágico.
Bem, me parece que, talvez, a realidade seja um pouco mais complicada.
Eu acho que a maioria - pra não dizer TODAS - as pessoas que dizem isso não estão esclarecendo exatamente o que precisa ser esclarecido ou estão recebendo algum tipo de benefício com a divulgação desta mensagem aí.
Basicamente, não estão ajudando quem precisa ser ajudado e, muitas vezes, estão preocupadas apenas em endeusar a própria imagem pública em torno de si mesmos.
Steve Jobs e o seu discurso
Possivelmente, o maior discurso já proferido em favor de se "fazer aquilo que se ama" foi elaborado por Steve Jobs aos formandos da universidade de Stanford em 2005.
São 15 minutos das palavras mais mágicas, maravilhosas e inspiradoras que o Youtube já viu.
Mas, ao que parece, pode ser também um discurso meio furado com um grande intuito de sacramentar a imagem quase divina de Jobs para toda a eternidade.
Ao menos três livros contestam - fortemente - aquilo que Jobs celebra em seu discurso.
“Tão bom que você não pode ser ignorado”, de Cal Newport
“A álgebra da riqueza”, de Scott Galloway
A própria biografia de Jobs, por Walter Isaacson
Jobs será para sempre conhecido como empreendedor visionário que fundou, se afastou e retornou das cinzas para reerguer aquela que é - hoje - a maior companhia de tecnologia do mundo.
Só que em seus anos de juventude e início da vida profissional NENHUMA das “paixões” de Jobs tinha a ver com computadores ou empreendedorismo.
Jobs estudou na Reed College, uma escola de ARTES em Oregon.
Jobs não gostava de tomar banho e fedia.
Sim. Fedia.
As pessoas não queriam ficar na mesma sala que ele em decorrência do seu fedor e da sua aversão a banhos.
Jobs acreditava que a sua dieta bizarra baseada em jejuns, óleos e castanhas impediria que ele tivesse bafo e catinga.
Naquele momento da vida, Jobs parecia ser até um figura meio repulsiva. Isaacson deixa isso bem claro em sua biografia.
Durante os anos de faculdade, Jobs demonstrava grande interesse por misticismo oriental e nenhuma admiração por negócios ou componentes eletrônicas.
O evento que funcionou como estopim para a revolução que o mundo iria vivenciar começou de uma situação totalmente inesperada e sem nenhum vínculo com as suas “paixões”.
O começo da sua parceria lendária com o outro Steve - Wozniak, aquele que, ao que tudo indica, era o verdadeiro gênio da tecnologia - surgiu de um "bico" para montar alguns componentes eletrônicos e que foi aceito apenas porque iria gerar um bom retorno financeiro. Só isso.
Qual o verdadeiro problema aqui?
Jobs será sempre uma lenda, mas quando pessoas muito jovens, muito inexperientes e muito ansiosas assistem ao seu discurso, elas começam a achar que o único trabalho que elas devem procurar é aquele que atende às suas "paixões“, seja lá o que diabos isso significa.
Nenhum outro trabalho teria importância.
Nada mais presta se a pessoa não acordar “amando” o seu trabalho.
Bem, meus amigos, sugiro então que leiam a biografia de Jobs.
É fácil perceber que, em muitos dias daquele trabalho “amado” por Jobs, ele, provavelmente, odiou a sua existência.
Odiou com todas as suas forças, que não eram poucas.
A quantidade de chiliques, explosões de raiva, choros, lamentos, decepções, angústias, traições e reviravoltas levantam sérias dúvidas de que Jobs nunca teve que “trabalhar” um dia sequer, já que amava tudo aquilo.
Jobs trabalhou. Trabalhou MUITO. Muito mesmo.
Quando eu digo que ele trabalhou, estou me referindo ao conceito mais “pé no chão” de trabalho.
Trabalho envolve sofrimento.
Trabalho envolve angústia.
Trabalho envolve conflitos.
Trabalho gira em torno da dúvida. Dúvidas sem fim e sem respostas.
Trabalho envolve dor.
E tudo isso - TUDO MESMO - pode estar no melhor trabalho do mundo para a pessoa que você é.
O problema em relação ao discurso de Jobs é que ele leva pessoas mais jovens a desistir ou ignorar oportunidades promissoras porque elas, teoricamente, não estariam atendendo “às suas paixões” do momento.
A pessoa desiste porque não estaria “amando” acordar para trabalhar.
O problema com o discurso de Jobs é que ele diminui a resiliência das pessoas em relação ao trabalho e as suas dificuldades inerentes.
Jobs jamais teria construído a Apple sem passar pelo inferno que foi a sua construção.
Mas o discurso de Jobs levanta a ideia de que a passagem por esse inferno não seria necessária.
Mas é, SIM.
O “inferno” não é apenas real, mas representa um componente ABSOLUTAMENTE FUNDAMENTAL para a obtenção de uma vida profissional mas recompensadora e impactante.
A dificuldade, o sofrimento e o cansaço não são partes exclusivas de um trabalho inadequado.
A dificuldade, o sofrimento e o cansaço são componentes “de fábrica” dos trabalhos mais adequados e recompensadores que uma pessoa pode se deparar.
Amar o seu trabalho, desde o início, todos os dias e para sempre, é uma fábula vendida por pessoas que, provavelmente, estão lucrando com a venda desta imagem.
Não siga sua paixão, siga seu talento
Scott Galloway, em seu recomendadíssimo “A álgebra da riqueza” defende que as pessoas não devem fazer escolhas profissionais de acordo com “paixões”, mas, na verdade, buscar encaixar o seu trabalho conforme os seus TALENTOS.
Paixão é algo poético, místico, romântico.
Tudo isso tem pouquíssima - ou nenhuma - aplicação prática.
Contudo, “talento” envolve atividades puramente mundanas que a pessoa, simplesmente, desempenha bem.
O enorme talento de Jobs era convencer outras pessoas.
Esse era, sem dúvida, o seu maior talento.
Ele conseguia vender uma imagem, um sonho, para outras pessoas com outros tipos de talentos e estas outras pessoas tornavam aquele sonho algo real neste mundo.
Pare de romantizar o seu trabalho
Quanto mais “romance” você adicionar a imagem profissional que você está construindo, mas infeliz será sua carreira.
Simples assim.
Toda a idealização que estudantes de medicina são expostos desde antes do ingresso na faculdade até a cerimônia glamourosa de formatura apenas condenam estas pessoas a buscar uma representação enganosa e inexistente a respeito da vida na medicina.
Quanto mais “amor” você quiser vender junto com a sua imagem profissional, mas frustração você encontrará.
“O que fazer, então?”
Minha sugestão é que você dedique todas as suas energias para descobrir onde seus talentos se encaixam melhor.
“Que tipos de talentos?”
Coisas extremamente banais e mundanas
Nada românticas.
Nada poéticas.
Nada glamurosas.
Não necessariamente “bonitas” ou que você goste de falar para os outros.
Ser bom em acordar cedo e respeitar horários.
Ser bom em fazer algo e repetir esse algo zilhões de vezes.
Ser bom em comandar os outros.
Ser bom em obedecer os outros.
Ser bom em executar tarefas que exijam destreza manual.
Ser bom em apaziguar conflitos.
Ser bom em ignorar a opinião dos outros.
Ser bom em ouvir a opinião dos outros.
Ser bom para tomar decisões.
Ser bom em executar decisões tomadas por outras pessoas.
Ser bom em resolver as coisas “pra ontem”
Ser bom em ter paciência e aguardar.
Em cada área da medicina, um desses talentos pode ser muito bem aproveitado ou completamente desprezado.
Mas vejam bem.
Todos estes “ser bom” aí precisam escutar o grito da realidade, não as confabulações da sua cabeça.
Eu achava que seria bom fazer algumas coisas. A realidade mostrou que eu não era.
O contrário também é verdadeiro. Existem coisas que eu sou bom hoje, mas que eu achava que não seria.
A sua verdadeira função, no momento de uma escolha profissional importante, é entender os seus verdadeiros talentos e descobrir onde eles se encaixam melhor.
Para isso acontecer, será necessário tentar e, muita vezes, fracassar.
O fracasso é o melhor professor que existe se você estiver disposto a ouvir o que ele tem a dizer.
O que acontece em seguida é o seguinte:
Talentos valorizados pela atividade que você escolheu
-> -> ->
Progressivamente você irá desempenhar seu trabalho de forma cada vez melhor
-> -> ->
Oportunidades mais interessantes vão aparecer na sua vida, já que você se tornou bom aquilo que você faz
-> -> ->
O trabalho fica cada vez melhor
-> -> ->
Talvez agora, mas SOMENTE AGORA, você até pode “amar” o seu trabalho.
Assim, ao tomar a decisão de um caminho profissional na medicina, ignore inicialmente suas auto proclamadas “paixões" e foque exclusivamente nos seus TALENTOS, mesmo que estes não sejam tão “gloriosos” ou que não sejam tão bonitinhos.
Não é o que você vai ouvir por aí, mas é o que parece realmente funcionar.
O “amor” pelo trabalho NUNCA vai existir de cara, de largada.
NUNCA.
Quem fala que amou seu trabalho desde o primeiro dia está mentindo ou não tem a menor noção de nada neste mundo.
Serão anos, ou mesmo décadas, de um trabalho sofrido e bem executado para que você atinja um nível mais grandioso em torno dele.
Anos e décadas de muitos dias bons, mas vários tenebrosos também, que você quer abrir um buraco no chão e desaparecer.
Você - JAMAIS- - vai encontrar por aí o trabalho que você ama.
JAMAIS.
A única forma de obter isso é construir ele você mesmo através da compatibilidade dos seus talentos com as exigências da área escolhida.
Dias difíceis e algum sofrimento não significam que você escolheu a área errada, mas desempenhar mal o seu trabalho, depois de um bom tempo trabalhando nele, significa isso, SIM.
Seus talentos, provavelmente, poderiam ser muito melhor empregados em outro lugar.
“Nossos talentos não são óbvios, mesmo para nós, e em geral não são o que pensamos ou desejamos que sejam. Coloque-se em novos contextos e ouça o que as outras pessoas lhe dizem sobre seus pontos fortes.”
“Paixão continua e gratificante é o produto de seu trabalho duro e do seu caráter forte, não a causa”
Scott Galloway - A álgebra da riqueza
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